domingo, setembro 30, 2007

Desmemória do ilustre angolano: agonia constante

de Thiago Berzoini
I
Agonia constante o abatia há meses e então, cansado de viver na casa do velho Ramalho, resolveu pegar a velha bolsa de pano puído e colocar seus poucos pertences dentro dela. Abriu a gaveta calmamente e observou os seus objetos. Uma fita cassete, um walkman, duas pilhas, um pequeno calendário com uma paisagem árida e fotos de uma mulher que lhe dava repulsa, apesar de bonita. Havia ali também alguns livros, dois aristóteles e um Camus de páginas amareladas e já carcomidas, e um Faulkner com dedicatória trazendo os dizeres: "Saboreie este intenso volume. com carinho, Almiro e Amanda". Quem eram e por quê lhe deram o livro ainda era um mistério, mas de todas as coisas não sabidas, "Almiro e Amanda" eram os que menos lhe incomodava porém o que mais lhe impulsionava a sair dali. Havia uma vida inteira esquecida, e ansiava por lembrá-la. Almiro e Amanda sendo os nomes únicos que possuía de seu passado eram assim caminho para alguma descoberta. Porém, os meios para se chegar a esse caminho lhe era estranho, inimaginável. E pensava nisso enquanto posicionava as pilhas no walkman e colocava suavemente a fita cassete como se tivesse um prazer infantil em ouvir os estalares e ruídos dos encaixes do aparelho. Apertou o "play" e ouviu uma vez mais um trecho da música que mais lhe agradava naquela fita. Ramalho certa feita lhe disse o nome do conjunto: "Duo Ouro Negro", e certamente nada lhe dizia esse nome.
Foi até a janela de onde olhou a vizinhança pobre. Pensava se deveria se despedir de Ramalho.
Não lhe era decisão fácil, e por isso mesmo recostou-se na cama ouvindo a fita e adormecera...
"Quando amanhã romper eu vou cantar,
eu vou sorrir, eu vou viver..."
A canção tocava como uma ode à esperança daquele desmemoriado angolano adormecido na cama.
BERZOINI, Thiago. Desmemória do Ilustre Angolano.

quinta-feira, setembro 06, 2007

A janela-paisagem do décimo oitavo andar

por Thiago Berzoini

No fim da tarde, observava da janela os prédios iluminados pelo sol que se escondia. Parou os olhos acima, no céu sem branca nuvem. Pássaros em pares cruzaram a cena.
Silêncio frio e intenso, condizendo com o corredor estreito de paredes cinzas do décimo oitavo andar, por onde se avistava o sul da cidade.
Olhando esses blocos de concreto infinitamente alongados é como se vida alguma os habitasse.
Tudo é frio.
Tudo é calado.
Até o conceito de vida parece gelado. Nem mesmo o sol que ilumina levemente o topo dos edifícios parece esquentá-los.
O barulho que quebrou o silêncio, e fez desviar os olhos da janela veio dos elevadores. São três, além do corredor. Passam mas não fazem barulho algum, exceto quando algum passageiro desce no andar, mas até o momento nenhum desceu... até o momento.
O menor e mais suave dos passos ecoa espalhafatoso devido ao vazio do andar. As portas estão fechadas, à direita do elevador, lado oposto ao corredor, apenas uma firma de advocacia está com suas portas de vidro abertas e com luzes acesas, dando vida ao ambiente. No mais, todas são portas de madeira sem luxo algum.
Surge a senhora de meia-idade que sequer olha para os lados, ela para em frente à primeira porta do corredor, coloca apressada as mãos brancas e finas na bolsa bege e após remexer um pouco retira as chaves, levando-as de encontro ao segredo da porta, que se abre. Por segundos o andar pareceu habitado, até seus passos serem abafados pela porta se fechando.
Toda a imensidão parece caber naquele estreito corredor frio novamente.
Os olhos correm lentos pelo chão branco, limpo e retornam se fixando na paisagem apresentada pela tímida janela de ferro. A janela-paisagem do décimo oitavo andar.