sexta-feira, outubro 20, 2006

O fim de Jorge Borrete

Escrito por Thiago Berzoini
"Lá estavam eles, repousavam as lâminas espreitas e ocultaram as línguas farpentas. Pelos braços jocosos aconchegaram mais um dos meus. Observei calado, e cheguei até, em certo momento, acreditar que eram pessoas normais como qualquer outra a quem se convivia no dia-a-dia. Mas não, esses seres eram ardilosos e apesar da aparência física semelhante à humana, creio eu, a essência era monstruosa. Se possuíam cabelos, nariz, boca, olhos, tronco membros inferirores e membros superiores, tudo como estamos acostumados a ver, possuíam, também, em seu íntimo um tenebroso estilo de sociedade. Sim, pois se organizavam em uma pequena sociedade. Eram ensimesmados e isso até me agradava neles, pois era a parte que eu me sentia próximo.
Adormeci brevemente no cair da tarde, logo quando receberam-no com abraços, e acordei á noite.
À noite retiravam as máscaras de jacarandá, com pinturas em amarelo e vermelho e, enquanto meus subordinados dormiam, dançavam em volta a uma fogueira que exalava uma densa fumaça com odor desagradável, odor forte, que me lembrava cheiro de carne queimada.
Lembro-me desse cheiro pois logo no primeiro dia que nos embrenhamos a contra-gosto nessa floresta selvagem a qual agora nos encontramos, -e não todos juntos, é verdade...pois alguns ainda se encontram perdidos ao redor desse verde extenso -, Ramirèz, com sua tocha, acabou se incendiando ao acidentalmente cair. O coitado torceu o pé ao pisar em falso, em cima de um lagarto morto, incendiando as próprias pernas e o fogo se alastrou rapidamente pela mata, e igualmente veloz pela sua roupa. Não estávamos perto, por isso não tínhamos como ajudá-lo. Quando cheguei perto de onde estava, eu o vi correndo para o meu lado, o cheiro era forte, e ouvia sua carne estalar. Ele caiu, e rolou no chão, eram gritos ensurdecedores, e rolava, até que pararam os gritos e os movimentos. Havia morrido o pobre Ramirèz que, em momento algum queria estar nessa expedição pelo que os colegas disseram depois de vê-lo carbonizado, mas que nunca reclamou comigo. Ele era bom, o pobre Ramirèz... Não tão bom era o nobre Jorge Borrete, que chegara há pouco e fora recebido pelos já ditos "braços jocosos" do povo mascarado. Agora Borrete dormia, e o povo estranho dançava ao redor da fétida fogueira. Começaram então a entoar pequenos cantos, imagino eu de guerra ou de oferenda, breves sussurros e esganiçavam a voz, quase que como uivos. Faziam uma coreografia desengonçada e torpe, alguns pareciam enebriados. esses eram os homens mais velhos, dançando cambaleantes, haviam inspirado uma fumaça que saía de dentro de um côco verde... Não posso sequer arriscar um palpite sobre o que se tratava a tal coisa que eles inspiravam. Mas era algo forte.
Mais distante, a pequena cabana, onde Borrete estava a dormir. Ele agora chega na porta, parece atordoado. Lá há dois deles, que faziam guarda e imediatamente se aproximam de meu colega, parecem conversar, mas a maioria deles não fala nossa língua. O mais velho, o que mais cambaleia ao dançar, era o único que entendia o que eu dizia. Borrete levou uma porrada no estômago, da lança do esguio guarda que o abordava. Borrete cai de joelhos, esfrega a barriga, enquanto faz caretas. A lança atinge sua nuca, e ele cai, deitado. Voltou a dormir pelo menos, e não vai sentir dor. Percebi enquanto o homem o acertava na nuca, que o segundo "vigia" correu até a roda em volta da fogueira e disse algo ao velho enebriado. Este por sua vez estancou seus pés, quase firmes, na medida do possível, e ouviu o que o outro dissera. A dança parou aos poucos, e o silêncio tomou conta do lugar, todos ficaram estáticos. O velho tocou a fronte daquele que ficou a lhe falar por alguns instantes e então virou-se para os demais, que se encontravam até segundos atrás comemorando. Murmurou algo. Entre os outros, um burburinho se estabeleceu, e o velho num grito fino, e ríspido apontou para a cabana. Dançavam novamente ao redor da fogueira, enquanto os dois homens que se encarregavam de fazer a guarda de cabana traziam Jorge Borrete, desmaiado. Aproximaram-se da fogueira...jogaram teu corpo ao fogo. E todos sem exceção dançaram ainda mais eufóricos enquanto o corpo de meu amigo queimava, e a carne estalava. Não gritava de dor ao menos, já deviam tê-lo matado. O cheiro de carne queimando invadiu meu nariz, e senti-me nauseante. Em menos de um minuto, o meu peito fora enxarcado pelo meu vômito. Não nego, o calor ali era insuportável e eu assim, ao menos me refresquei...
Rezei à São Cristóvão para que me enviasse alguma ajuda, pois eu me encontrava fatigado, com o corpo dolorido, e sem saber o que mais assistiria antes de encontrar meu derradeiro fim. Enquanto eu orava, eles dançavam e contorciam-se numa festa que se tornou lentamente orgiástica..."
Writen by Thiago Berzoini - all rights reserved - "Trechos inóspitos de minhas memórias pelas terras do Globo desconhecido". 2006

quinta-feira, outubro 12, 2006

Fui Viajar

Thiago Berzoini

Fui viajar.
Fui ver os meninos correndo com os pés descalços,
e as meninas sorridentes ao ver o homem da lua,
ver as árvores e flores, umas verdes outras mortas.
Ver as estradas acinzentadas com seu movimento característico,
ver as estradas de terra levantarem poeira ao meu passar.

Fui viajar.
Ver os bois no alto dos pastos,
e os sabiás cruzando os céus,
as cigarras cantarem incessantes,
e besouros passarem esvoaçantes.

Fui viajar.
Ver essa gente cansada que não cansa de ser feliz,
e respisrar o ar puro que muito pouco me diz
pensar e encontrar-me comigo mesmo.
Por isso fui viajar.
Com grandes anseios e propósitos.

Fui viajar.
Para ensinar o pouco que sei,
e iludir os que irão assistir a história de um grão vizir.
Para cantar desamores em outros casarões,
em velhos pisos de madeira chorona.

Fui viajar.
Vou voltar já, e rever essa gente estúpida,
com farpas na língua e lâminas à espreita.
Vou voltar já, para rever minha gente mascarada,
de falsos abraços e redundantes sorrisos.

Sim, fui viajar.

terça-feira, outubro 10, 2006

O heremita e o fardo

Thiago Berzoini

Exilado.
Problema resolvido.
Mensagem na garrafa.
A água no vidro.
Fecha os olhos, adormece caído.

Escárnio, chacota, risos noite afora,
Pelas suas costas.

Cansado e dolorido.
Acordou sentiu o frio.
Abriu os olhos. Fechou de novo.
Ainda caído.

Levantou, caiu, rastejou,
ajoelhou, se levantou, caiu,
rastejou, ajoelhou, ajoelhou.
Caiu.

Levantou, andou passos curtos...viu que o peito era remendado.
Arrancou o que já quase não batia e deixou guardado.
Se aquilo não lhe servia, era só mais um fardo.

sexta-feira, outubro 06, 2006

(Sem) Réquiem

Thiago Berzoini

Ele observava sereno, da janela de seu quarto, a rua.
Imaginara a árvore que havia ali em frente e que deu lugar ao caminho de uma garagem do prédio onde algumas dezenas de pessoas vivem.
Pensava em como antigamente a paisagem era mais acolhedora e bucólica...
Sentou-se em sua cadeira de balanço, e suspirou, na tentativa de sentir um perfume que lhe acolhesse, mas o cheiro que sentiu foi o seu próprio perfume. Olhou para os lados imaginando como seria se ao menos tivesse flores ali em seu quarto. Sim, flores. Ele não resmungava, estava sereno demais, estava triste até mesmo. Balançava-se na cadeira,e deixou de chofre escapar um sorriso tímido, quase não era um sorriso, mas ainda assim era. E foi involuntário. Imagine só, sorrir por pensar em algo, que nunca ocorrera em sua vida. Pensava nas tais flores que poderiam fazer parte de seu quarto de paredes brancas e um pôster de um antigo filme, “teu nome é mulher”. Suspirou uma vez mais insatisfeito, e foi aí que seu sorriso cortou-se e voltou a ter aquela expressão séria, serena, porém preocupada. Mas não, ele não ocupava a mente com problemas, não eram dívidas, nem se preocupava com os filhos, ou os netos, até porque nunca os tivera. Franzia a sobrancelha, por pensar, naquele momento, como teria sido se tudo tivesse dado certo, se tivessese dedicado menos ao trabalho, se tivesse se casado com seu primeiro amor, e se dali, tivessem nascidos os dois filhos, um casal, ambos com nomes de poetas. Sorriu, satisfeito, e imaginava naquela casa de cômodos largos as crianças correndo, brincando de pique, enquanto na cozinha, sua esposa preparava um sanduíche de presunto para aqueles dois pequenos. Ele na sua poltrona assistia a algum grande clássico da Paramount, da década de 50. Ficaria prestando atenção nos filhos sorridentes, e não no filme. Mas estaria feliz, pois o filme já teria visto milhares de vezes e seus filhos, esses sim valiam a pena ter sua atenção. Uma lágrima desceu pelos seus olhos, e tão leve, acariciava a pele carcomida pelo tempo enquanto descia até seu queixo, seu sorriso se esvai novamente. Seu sorriso se esvai muito fácil, e sempre se esvaiu, desde quando ainda era rapaz. Era sério, e maduro demais quando ainda nem precisava. Foi a vida, ele sempre pensou assim, foi ela a responsável pela dureza adquirida, e pelo rumo das coisas. Balançou-se um pouco mais forte,e pensou, como seria se os amigos viessem no sábado a noite jogar uma partida de Buraco enquanto deliciavam um vinho, mesmo que a safra não fosse das melhores, apenas pelo prazer de degustar o vinho enquanto jogavam amigavelmente o carteado, como os amigos de seu avô faziam na velha casa quando ele ainda era criança. Mas eles nunca foram. Nunca houve uma partida em sua casa. A única partida que conhecera em seu lar, foi daqueles que amou um dia.
E então, lhe veio à mente novamente as crianças, pouco mais crescidas querendo dinheiro para sair com os amigos, e ele lhes repreendendo carinhosamente, como só um pai saberia fazer, dizendo-lhes sobre o perigo que “essa juventude” oferecia. Suspirou uma vez mais, na tentativa de sentir o perfume de seus filhos. Sentiu apenas seu próprio cheiro, “cheiro de velho”. Imaginou sua esposa que jamais teve olhando apaixonada, encostada no vão da porta de sua casa aconchegante enquanto as crianças fechavam a porta da sala. Tão leve, mais uma lágrima desceu, e então, com suave sorriso fechou seus olhos, e foi descansar.Sem nenhuma flor, sem nenhum perfume, sem nenhum filho ou esposa. E sem quem alguém lhe visitasse. Lá fora, o mundo nem mais lembrava seu nome. Mas a cadeira balançava naquele quarto branco, e o sol iluminava suas pernas, a lágrima escorria sobre sua face, e então, a cadeira não mais balançou.

quinta-feira, outubro 05, 2006

I

Thiago Berzoini

Te vejo intangível.
Tua majestosa efígie,
Cabe a meu ser contemplar.

quarta-feira, outubro 04, 2006

II

Thiago Berzoini

Até veria o imóvel
mexer-se uma vez mais,
na paisagem súbita da memória,
onde tua imagem se faz.

III

Thiago Berzoini

Vai, desperta logo deste teu sono,
e vem para os meus braços, pois te espero.
Te espero e observo,
dia após noite, e noite após dia
Tu nem de longe és fria.